Aconteceu há um mês e um dia, a 29 de agosto, uma quinta-feira. Mas, como este blog não tem compromisso com o que aconteceu hoje, ontem ou seja quando for — e comentamos o que julgamos importante ou interessante para o leitor –, gostaria de lembrar o marcante que foi assistir ao parlamentarismo em ação. Foi quando a Câmara dos Comuns do Parlamento britânico decidiu que não, não iria autorizar o primeiro-ministro conservador David Cameron a tomar a iniciativa de um ataque militar à Síria ou participar, junto aos EUA, de uma ação punitiva contra o uso de armas químicas pelo ditador Bashar Al-Assad na guerra civil que o país vive há mais de dois anos. Assisti por um canal pago ao debate inteiro no Parlamento britânico — até fisicamente mais favorável à democracia do que os demais: não é um plenário gigantesco, um hemiciclo em que todos os olhares ficam dirigidos à mesa que dirige os trabalhos, mas um salão em que os deputados se sentam frente a frente, em bancadas a pouca distância uma da outra, e o primeiro-ministro do Partido Conservador e o líder da oposição (no caso, o trabalhista Ed Miliband) falam de pé, junto a uma espécie de mesa de apoio, a não mais de dois metros e meio de distância. No fundo do salão, fazendo um “U”, fica o presidente, ou Speaker. Plenário do Parlamento britânico: até o formato físico é mais propício ao exercício democrático (Foto: HuffingtonPost.co.uk) E que beleza, ver um governante de um país poderoso no meio de seus pares — são todos deputados como ele –, prestando contas, sendo interrogado, cobrado e defendido por sua proposta. O nível dos debates faria corar de vergonha, por comparação, a cidadãos de países como o Brasil e seu Congresso. Os deputados conservadores (conhecidos como tories), trabalhistas, liberais-democratas ou de um ou outro pequeno partido que constituem a Câmara dos Comuns, sem exceção, revelavam excelente conhecimento de causa do que estava em questão e de antecedentes históricos. Vários deles debateram, em detalhes, com argumentos sólidos, a questão sobre se o uso de armas químicas poderia ter sido utilizado pelas forças da ditadura de Assad ou pelos insurgentes, conforme a predominância de controle de território por um lado ou outro nas áreas afetadas. Um deputado obteve informações de primeira mão dos Médicos sem Fronteiras que atenderam as vítimas e as incluiu em seu aparte. Outro lembrou fatos históricos com precisão para alertar sobre a eventual inação dos britânicos diante da utilização de armas de guerra proibidas por tratados internacionais. Argumentou que, em 1935, a falta de reação do Reino Unido, da França e de outras potências à invasão da Abissínia (hoje Etiópia e Eritreia) pela Itália fascista teria sido um dos fatores que conferiram segurança ao Eixo com a Alemanha nazista para sua política de expansão pelas armas. Nenhum aparte a que assisti me pareceu mal argumentado, demagógico ou sem substância — aí incluído o de uma das grandes damas do teatro e do cinema britânicos, Glenda Jackson, que aos 77 anos é há 20 deputada pelo Partido Trabalhista. No final dos debates, e mesmo detendo a maioria dos deputados dos Comuns com a aliança entre os partidos Conservador e Liberal Democrata, Cameron perdeu por 285 votos a 272, vendo vários deputados tories votar com a oposição, naquilo que o influente jornal The Guardian, próximo aos trabalhistas, qualificou de “um golpe devastador para sua autoridade”. Diante do “golpe devastador”, sabem o que Cameron disso? – Esta noite, ficou muito claro para mim que o Parlamento britânico, refletindo a opinião do povo britânico, não quer ver uma ação militar britânica [na Síria]. Entendi a mensagem, e o governo vai agir de acordo com ela. Ponto final! O mundo não caiu! Cameron está lá, morando no número 10 da Downing Street e governando normalmente. Já no presidencialismo torto que, de forma canhestra, copiamos dos Estados Unidos desde a primeira Constituição da República, a de 1891 — que adotou, para um país de multicentenária tradição centralista, o ridículo nome de “Estados Unidos do Brasil”, felizmente banido ainda antes da Constituição de 1988 –, as coisas são muuuuuuuuuuito diferente. Até presidentes fracos conseguem manter atitude imperial. As medidas provisórias, infelicíssima construção da Constituição, na prática esvaziam o Congresso de suas mais nobres e importantes prerrogativas, deixando a iniciativa legislativa nas mãos do Executivo. Os abusos de poder são facilitados. A prevalência do Executivo sobre os demais Poderes é um defeito de origem insanável. Há décadas, ou desde sempre, chamamos “governo” apenas ao Executivo, quando nos EUA, que inventaram o presidencialismo, todos sabem que “governo” são os três Poderes, e que o Executivo, mesmo muito poderoso, é a “administração” — e depende enormemente do Congresso eleito pelo povo (e, no caso da Câmara de Representantes, renovada e revigorada a cada dois anos) Minha tese pessoal é de que o presidencialismo puro, como inventado pelos americanos, só deu certo em um único país do mundo: os próprios Estados Unidos.
terça-feira, 1 de outubro de 2013
Ah, que inveja do parlamentarismo.(por Ricardo Setti)
Aconteceu há um mês e um dia, a 29 de agosto, uma quinta-feira. Mas, como este blog não tem compromisso com o que aconteceu hoje, ontem ou seja quando for — e comentamos o que julgamos importante ou interessante para o leitor –, gostaria de lembrar o marcante que foi assistir ao parlamentarismo em ação. Foi quando a Câmara dos Comuns do Parlamento britânico decidiu que não, não iria autorizar o primeiro-ministro conservador David Cameron a tomar a iniciativa de um ataque militar à Síria ou participar, junto aos EUA, de uma ação punitiva contra o uso de armas químicas pelo ditador Bashar Al-Assad na guerra civil que o país vive há mais de dois anos. Assisti por um canal pago ao debate inteiro no Parlamento britânico — até fisicamente mais favorável à democracia do que os demais: não é um plenário gigantesco, um hemiciclo em que todos os olhares ficam dirigidos à mesa que dirige os trabalhos, mas um salão em que os deputados se sentam frente a frente, em bancadas a pouca distância uma da outra, e o primeiro-ministro do Partido Conservador e o líder da oposição (no caso, o trabalhista Ed Miliband) falam de pé, junto a uma espécie de mesa de apoio, a não mais de dois metros e meio de distância. No fundo do salão, fazendo um “U”, fica o presidente, ou Speaker. Plenário do Parlamento britânico: até o formato físico é mais propício ao exercício democrático (Foto: HuffingtonPost.co.uk) E que beleza, ver um governante de um país poderoso no meio de seus pares — são todos deputados como ele –, prestando contas, sendo interrogado, cobrado e defendido por sua proposta. O nível dos debates faria corar de vergonha, por comparação, a cidadãos de países como o Brasil e seu Congresso. Os deputados conservadores (conhecidos como tories), trabalhistas, liberais-democratas ou de um ou outro pequeno partido que constituem a Câmara dos Comuns, sem exceção, revelavam excelente conhecimento de causa do que estava em questão e de antecedentes históricos. Vários deles debateram, em detalhes, com argumentos sólidos, a questão sobre se o uso de armas químicas poderia ter sido utilizado pelas forças da ditadura de Assad ou pelos insurgentes, conforme a predominância de controle de território por um lado ou outro nas áreas afetadas. Um deputado obteve informações de primeira mão dos Médicos sem Fronteiras que atenderam as vítimas e as incluiu em seu aparte. Outro lembrou fatos históricos com precisão para alertar sobre a eventual inação dos britânicos diante da utilização de armas de guerra proibidas por tratados internacionais. Argumentou que, em 1935, a falta de reação do Reino Unido, da França e de outras potências à invasão da Abissínia (hoje Etiópia e Eritreia) pela Itália fascista teria sido um dos fatores que conferiram segurança ao Eixo com a Alemanha nazista para sua política de expansão pelas armas. Nenhum aparte a que assisti me pareceu mal argumentado, demagógico ou sem substância — aí incluído o de uma das grandes damas do teatro e do cinema britânicos, Glenda Jackson, que aos 77 anos é há 20 deputada pelo Partido Trabalhista. No final dos debates, e mesmo detendo a maioria dos deputados dos Comuns com a aliança entre os partidos Conservador e Liberal Democrata, Cameron perdeu por 285 votos a 272, vendo vários deputados tories votar com a oposição, naquilo que o influente jornal The Guardian, próximo aos trabalhistas, qualificou de “um golpe devastador para sua autoridade”. Diante do “golpe devastador”, sabem o que Cameron disso? – Esta noite, ficou muito claro para mim que o Parlamento britânico, refletindo a opinião do povo britânico, não quer ver uma ação militar britânica [na Síria]. Entendi a mensagem, e o governo vai agir de acordo com ela. Ponto final! O mundo não caiu! Cameron está lá, morando no número 10 da Downing Street e governando normalmente. Já no presidencialismo torto que, de forma canhestra, copiamos dos Estados Unidos desde a primeira Constituição da República, a de 1891 — que adotou, para um país de multicentenária tradição centralista, o ridículo nome de “Estados Unidos do Brasil”, felizmente banido ainda antes da Constituição de 1988 –, as coisas são muuuuuuuuuuito diferente. Até presidentes fracos conseguem manter atitude imperial. As medidas provisórias, infelicíssima construção da Constituição, na prática esvaziam o Congresso de suas mais nobres e importantes prerrogativas, deixando a iniciativa legislativa nas mãos do Executivo. Os abusos de poder são facilitados. A prevalência do Executivo sobre os demais Poderes é um defeito de origem insanável. Há décadas, ou desde sempre, chamamos “governo” apenas ao Executivo, quando nos EUA, que inventaram o presidencialismo, todos sabem que “governo” são os três Poderes, e que o Executivo, mesmo muito poderoso, é a “administração” — e depende enormemente do Congresso eleito pelo povo (e, no caso da Câmara de Representantes, renovada e revigorada a cada dois anos) Minha tese pessoal é de que o presidencialismo puro, como inventado pelos americanos, só deu certo em um único país do mundo: os próprios Estados Unidos.
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