A Construção Social da Cidadania: O Direito Achado na Rua
Em sua edição comemorativa de aniversário (nº 7), a revista GETULIO, da GV-Law de São Paulo fez uma longa entrevista com o Professor José Geraldo de Sousa Junior, um dos coordenadores de Constituição & Democracia. Conduzida pelo editor de GETULIO, jornalista Carlos Costa e por Leandro Silveira Pereira, coordenador do curso de Direito da FGV, que se deslocaram a Brasília para ouvir o entrevistado, o depoimento abrangeu aspectos da trajetória profissional e da atuação política do entrevistado na advocacia, na OAB, no MEC e também na docência e no acompanhamento dos temas do conhecimento e do ensino jurídico e vem alcançando ampla repercussão. Autorizado pela GETULIO, Constituição & Democracia publica neste número, a parte bastante reduzida do depoimento que aborda os temas vinculados à construção social da cidadania e a "O Direito Achado na Rua".
O senhor fez o mestrado com o Roberto Lyra Filho aqui na Universidade de Brasília (UnB). Tinha alguma ligação com movimentos sociais antes disso?
Tinha na medida em que integrava a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Distrito Federal, num momento em que Brasília não tinha nem autonomia política nem representação parlamentar, pois o Distrito Federal, na Constituição de 1969, não tinha autonomia nem representação política. O governador era nomeado e a legislação ficava a cargo de uma comissão no Senado. A cidade não tinha um espaço político para repercutir as questões da população. Nesse quadro, entidades civis, como a Associação Comercial e sobretudo a OAB, funcionavam como espaço de ressonância. Nele, os movimentos sociais buscavam constituir seus fóruns de discussão. E a OAB, aqui em Brasília, fortaleceu essa possibilidade. Sua Comissão de Direitos Humanos foi um grande mediador, no sentido de criar condições para as pessoas afirmarem suas identidades.
Como foi seu encontro com o Roberto Lyra Filho? Seu doutorado é sobre a figura dele?
Não sobre a figura mas sobre a concepção que ele trouxe para o Direito. Estávamos em 1978, vim fazer o mestrado com o Lyra Filho. Estava interessado em trabalhar com uma proposta que se apoiava em alguns vetores para mim importantes. Primeiro, pensar o jurídico desde uma perspectiva politizadora. Marilena Chauí diria depois que o Lyra se caracterizou como uma espécie de dignidade política do Direito. Ela até escreveu um texto com esse título: "Roberto Lyra Filho ou da dignidade política do Direito". Então, me interessava esse processo porque a nossa inserção na plataforma das lutas democráticas fazia ver que o Direito era um Direito que cerceava as liberdades, não era emancipatório, era restritivo. O verdadeiro Direito tinha que emergir dessas lutas e se afirmar, às vezes inclusive contra legem, como reivindicação por liberdade e por justiça.
E essa foi uma vertente importante nos trabalhos do Lyra Filho?
Sim, sobretudo quando tomava forma epistemológica mais definida. Ele havia lido, em 1978, um manifesto aqui na UnB, depois publicado sob forma de opúsculo, com o título "Por um Direito Sem Dogmas". Era outro modo de pensar o jurídico, em que a compreensão do Direito não fosse uma dedução do legal, mas uma construção social da liberdade. Esse material depois tomaria forma mais definida num livro que ele publicou e que hoje já tem mais de 30 edições, O Que é Direito?, da Coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense, publicado em 1982. Esse modo de pensar o Direito tinha outras ramificações, por exemplo, na área do ensino. Roberto Lyra criticava o ensino do Direito por conta do duplo equívoco: a inadequada concepção do objeto de conhecimento e os defeitos da pedagogia decorrentes desse equívoco. Ou seja, não se ensina bem o que se apreende mal. Em O Que é Direito? ele consolida essa concepção mais epistemológica de que o Direito não é a norma. Ele até pode se manifestar por meio de normas, mas tem de ser a expressão de uma legítima organização social da liberdade. Essa reflexão se consolida com a criação, aqui na UnB, de uma revista para ser veículo de expressão dessas idéias, e que se chamou Direito e Avesso.
O Lyra gostava de instigar com os títulos. Como no caso do "Direito Achado na Rua", de onde vem essa expressão? Isso tinha a ver com o lado do Roberto Lyra Filho poeta?
Sim, ele até usava um pseudônimo artístico, Noel Delamare, quando fazia poesia. Ele trabalhava muito a metáfora literária, como essa do "Direito Achado na Rua". Foi um grande tradutor de poemas. Teve um projeto chamado "Cancioneiro dos Sete Mares", que era traduzir grandes poetas nos sete idiomas que ele dominava. Curiosamente, o primeiro volume (1979) é num idioma que Lyra não dominava, o húngaro. No centenário de Endre Ady [poeta húngaro, 1877-
1919], o Paulo Rónai, um de seus grandes amigos, lhe diz: "Lyra, traduza o Ady". Ele respondeu: "Paulo, não falo húngaro". Ele disse: "Eu falo. Traduzo literalmente e você recria". Lyra gostava muito de poesia, traduziu um pequeno poema do jovem Karl Marx, aquele alemão que morreu na Inglaterra [risos].
E é atração turística de um cemitério londrino até hoje.
São os dois túmulos mais visitados do mundo: o do Marx, no Cemitério de Highgate, em Londres, e o do Allan Kardec, no Père-Lachaise, em Paris [risos]. Bom, Lyra gostava de poesia e traduziu esse poema do Marx, que dizia assim: "Kant e Fichte buscavam o país distante pelo gosto de andar lá no mundo da Lua, eu por mim tento ver, sem viés deformante, o que pude encontrar bem no meio da rua". Isso é Marx. O Lyra disse: "Quero aplicar no meu campo de conhecimento, que é o Direito, essa disposição do jovem Marx, e achar o Direito na rua". Ele queria construir um programa em que seus interlocutores se envolvessem com esse projeto. Por exemplo, no Direito do Trabalho, ele conversou com o jovem advogado Tarso Genro, que escrevia muito na Direito e Avesso. O Lyra morreu e o projeto só ficou esboçado. Já aí Roberto Lyra falava de uma nova escola jurídica brasileira, antipositivista, democrática, pluralista, orientada pela perspectiva de um socialismo democrático.
O senhor foi diretor de ensino superior, no MEC, e diretor da Faculdade de Direito da UnB. Até que ponto, com esses trabalhos, levou adiante as idéias do Roberto Lyra?
De vários modos. E em diversas etapas. Um exemplo foi a criação do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares. O próprio Cristovam, quando reitor, se engajou nisso e fundou um dos núcleos, o Núcleo de Estudos do Brasil Contemporâneo, no qual foi pensada e formada, por exemplo, a proposta do Bolsa Escola. Além dos textos que foram produzidos com a assinatura do Cristovam intelectual, acadêmico. Foram textos importantes como "A Revolução das Prioridades" e "A Desordem do Progresso".
Com sua visão, o senhor diria que o ensino de Direito na UnB está na frente?
Bem, ontem tivemos o encerramento do X Seminário de Ensino Jurídico da OAB. Há duas semanas a Associação Brasileira do Ensino do Direito, o Ministério da Justiça e a Secretaria de Reforma do Judiciário faziam um congresso nacional de ensino do Direito e de acesso à Justiça e pediram à Faculdade de Direito da UnB que sediasse e organizasse o encontro. Isto pode ser uma resposta formal à pergunta. Nesse congresso, o eixo foi 180 anos de ensino do Direito e acesso democrático à Justiça. É algo que está na base desse movimento importante, que me fez, por exemplo, causar algum frisson no congresso, pois abri a minha exposição dizendo que rejeitava hoje qualquer discurso que se apoiasse em indicadores da crise do ensino do Direito, pois isso é fácil. Crise a gente podia falar nos anos 1960, nos anos 1970, não é? Agora, depois de tudo que foi feito, com a abertura dos horizontes, com a construção de figuras de futuro...
Construção de figuras do futuro?
Bom, se você transita do passado para ao menos o presente, e estou falando de futuro, é preciso que tenha essa mediação para fazer a passagem, que sejam construídos a partir do futuro, porque senão atola no passado, fica bloqueado no presente. Pense no livro da Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro. No caso do ensino do Direito é sair dos elementos que nos aprisionavam no século 19. Estamos num presente que é vestíbulo do futuro. Estamos em pleno século 21, mas a cabeça ainda ficou no século 19! Com uma visão epistemológica que localiza o conhecimento na ciência e quer converter tudo que exista em conhecimento científico. Esse modelo foi o da modernidade, com tudo que representou: técnica, instrumentalidade e o enquadramento de pessoas. O papa João Paulo II há três anos absolveu Galileu da condenação de heresia! Há três anos!
Essa é a crise do Direito?
Essa é primeira: ficar preso a uma visão de ciência, como se fosse a expressão de conhecimento. A outra, é ficar preso a uma visão funcional, como se o modelo de Estado, também do século 19, fosse a única forma de fazer política. É por isso que não se reconhece a dimensão política dos movimentos sociais. Só vê política onde o Estado está. E a imprensa é o "diário oficial" da contemporaneidade, pois só vê o Estado. Tudo o que a sociedade constrói, ela não vê. Ignora. Só vê relevância no institucional. O social é inventivo, é criador, é transformador. Por isso o Fórum Social Mundial chamou tanta atenção, pois diz: "Olha aqui! O que existe não é só o que a gente vê!" No campo do conhecimento é o mesmo, o que Galileu dizia há quatrocentos anos: "A verdade é filha do tempo e não da autoridade". Ficamos presos a uma visão de política do século 19, com a cabeça lá, embora os pés já pisem o século 21. As figuras de futuro dizem: "Há outros conhecimentos, outras sociabilidades, achadas na rua". Claro, a rua é uma metáfora, não é?
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