No dia que o escritor João Ubaldo Ribeiro morreu, o Jornal Nacional informou: “A última crônica já está no site do jornal e traz a irreverência de sempre para falar do cotidiano.” Dito assim, parecia se tratar de mais um texto sobre caminhadas no Leblon, conversas de bar e outros temas leves do dia a dia presentes durante anos em sua coluna dominical no Globo.
Não sei se o repórter se limitou a ler o título – “O correto uso do papel higiênico” – e imaginou, sei lá, um manual de toalete, ou se o Jornal Nacional é que não quis revelar o verdadeiro conteúdo: uma crítica ao Estado Babá; ao paternalismo estatal; a “todas as medidas que agora vivem tomando, para nos proteger dos muitos perigos que nos rondam, inclusive nossos próprios hábitos e preferências pessoais”; ao “espírito desmiolado, arrogante, pretensioso, inconsequente, desrespeitoso, irresponsável e ignorante com que esse tipo de coisa vem prosperando entre nós, com gente estabelecendo regras para o que nos permitem ver nos balcões das farmácias, policiando o que dizemos em voz alta ou publicamos e podendo punir até uma risada que alguém considere hostil ou desrespeitosa para com alguma categoria social”. O imortal começava imaginando a tragicomédia de uma legislação sobre o papel higiênico para depois ironizar a Lei da Palmada e os planos de “proibir que os fabricantes de gulodices para crianças ofereçam brinquedinhos de brinde”.
Ubaldo podia dizer essas coisas sem ser tachado (com “ch”, sim, senhor) como troglodita de direita, fascista, nazista e demais epítetos atribuídos a ‘nozes’, porque, para além de certa imunidade que sua obra literária lhe garante, ele era um cronista político eventual que, mantendo a leveza habitual de seus escritos, geralmente se limitava a ironizar medidas, chavões, bobagens repetidas por aí, sem atribuí-las a determinada corrente político-ideológica nem desmascarar as pessoas responsáveis por elas, ainda que tenha criticado tanto FHC quanto Lula em seus governos, o que, neste último caso, rendeu-lhe a acusação básica de estar a serviço do PSDB.
Quando VEJA o entrevistou em 2005, ele explicou como reagia a isso:
Eu sou uma pessoa totalmente destituída de rabo preso. Nunca roubei ninguém, não tenho antecedentes criminais, nunca fui dedo-duro, é difícil desencavar em meu passado algo mais grave do que ter enganado uma namorada, e assim mesmo muito eventualmente. Quando eu falo mal do governo, recebo cartas iradas dizendo: “Mas o que o PSDB faria neste caso?”. Como se tudo o que eu escrevi contra o PSDB não valesse nada. No Brasil, sempre se acredita que a imprensa vive no bolso de alguém. Eu convivi com Roberto Marinho episodicamente por causa de nossa condição de integrantes da Academia Brasileira de Letras. Por ter comparecido a três ou quatro jantares na casa do dono da Globo, fui acusado de conspirar com ele. Você imagina que Roberto Marinho iria chamar um colunista de jornal para que ambos, juntos, manobrassem os cordões que gerem esta República? As pessoas têm essa convicção porque estão acostumadas ao ambiente de corrupção que reina no Brasil.
De nove anos atrás para cá, Ubaldo pode até ter incomodado o PT mais um pouco, mas, com o aumento de uma oposição intelectual mais incisiva, já estava muito longe de constar na lista negra do partido e, para a esquerda em geral, essas críticas ao governo petista reforçaram apenas o elogio póstumo à sua “independência”. Nelson Rodrigues, para citar outro autor de vasta obra ficcional no mínimo tolerado pela esquerda, era um reacionário assumido e, mesmo assim, este seu lado – de reagir a tudo que não presta, como ele dizia – até hoje é um tanto desconhecido do grande público. João Ubaldo não era Nelson, mas convém não deixar morrer tampouco, sob a imagem do cordial escritor de livros que falava com irreverência do cotidiano nos jornais de domingo, o seu lado “reaça”, o qual nada mais é que a sua visão intelectual independente sobre a realidade das coisas por trás das mentiras oficiais de cada dia.
Seguem alguns trechos memoráveis de seus artigos. Os subtítulos são meus.
Lula é de elite:
Outra palavra que já merece uma pesquisa semântica é “elite”. Lula também faz embaixadinhas com ela a torto e a direito e é preciso estar atento. Assim mesmo, é difícil entendê-la, a começar pela circunstância de que, desde a época em que foi chamado como promissor talento para a temporada universitária patrocinada pela AFL-CIO, formadora de quadros sindicais presente, respeitada e temida em todo o mundo, ele é elite. Foi elite dos sindicalistas, é elite do partido que está no poder, exerceu o posto mais alto da elite governante, num país onde o presidente da República é um monarca tratado com subserviência e vassalagem, viaja esplendidamente para palestras e lobbying, come do bom, bebe do melhor, é amigo pessoal e companheiro de lazer de ricos e poderosos, se trata nos mais respeitados hospitais com os mais renomados médicos, não entra em filas, não pega transporte público, não paga aluguel de casa nem prestação de carro, não se aporrinha com providências do cotidiano, não tem preocupação com o futuro, ganha mais do que todos os professores do primeiro grau da rede pública do Maranhão juntos, manda para lá, desmanda para lá e, ainda por cima, é cultuado por grande parte do povo. Então, ele não é elite? De que mais se precisa para ser elite?
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Contra o desarmamento:
(…) em cidades onde morre mais gente baleada do que em países em guerra, só podemos ser uma espécie de faroeste. Já nos acostumamos e por isso mal notamos. (…)
(…) agora o plano é desarmar os cidadãos, proibindo terminantemente o porte de armas, mesmo que exclusivamente dentro de casa.
(…) Mas o bandido? Ah, este estará de agora em diante perdido, porque o novo dispositivo legal cerceará sua ação criminosa. Verdade que terá certeza de que poderá entrar na casa de qualquer cidadão ordeiro, porque esse cidadão não contará com uma arma para defender-se. Mas o bandido poderá ser facilmente vencido. Basta que se guarde um exemplar da nova lei para mostrar ao assaltante: “Olhe aí, diz aqui que é proibido o porte de armas.” “Ah, desculpe”, dirá o assaltante, pedindo licença para retirar-se e saindo sem bater a porta. “Foi mal, eu não tinha sido informado.”
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Sobre a censura por racismo e a falsa “popularização” dos clássicos:
Não sei se vocês lembram, ou que fim levou, aquela história de censurarem, expurgarem ou proibirem um livro infantil de Monteiro Lobato, por aspectos considerados racistas. De vez em quando, fico um pouco impaciente e pergunto por que não proíbem logo “Os Sertões”, com tanto racismo contido na parte que todo mundo diz que leu, mas não leu, a referente ao homem. (…)
Mas, no caso de Machado, dizem as novidades, não se trata de racismo, trata-se da elaboração, com a chancela e o apoio do Estado, de versões populares, ou acessíveis à maioria, de obras dele. (…)
“Ela [a norma culta da língua] é necessária para preservar e aprimorar a precisão da linguagem científica e filosófica, para refinar a linguagem emocional e descritiva, para conservar a índole da língua, sua identidade e, consequentemente, sua originalidade. Ao contrário do que entendi de certas opiniões que li sobre o assunto, a norma culta não tem nada de elitista, é ou devia ser patrimônio e orgulho comuns a todos. Elitismo é deixá-la ao alcance de poucos, como tem sido nossa política”.
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O besteirol do descobrimento:
(…) quem fomos invadidos? Todos nós, salvante os mais ou menos 400 mil índios que sobraram por aí, somos descendentes dos invasores, inclusive os negros, que não vieram por livre e espontânea vontade, mas também não viviam aqui na época de Cabral e hoje constituem parte indissolúvel de nossa, digamos assim, identidade. Imagino que haja quem pense que, diante de uma delegação portuguesa, algum diplomata ou general índio tenha argumentado que se tratava da ocupação ilegal de um Estado soberano do Oiapoque ao Chuí e que aquilo não estava certo, cabendo talvez a intervenção das Nações Unidas. (…)
Vamos supor, já jogando no terreno da absoluta impossibilidade, que o chamado mundo civilizado ignorasse a existência destas terras até hoje. Teríamos aqui, não o Brasil, mas uns 4 milhões de nativos de beiço furado e pintados de urucu e jenipapo (nada contra, até porque furamos as orelhas, nos tatuamos e usamos batom, é uma questão de estilo), que não falavam as línguas uns dos outros, matavam-se entre si com alguma regularidade e cuja tecnologia não era propriamente da era informática. Brasil mesmo, nenhum.
Mas está ficando politicamente correto, suspeito eu que por motivos incorretíssimos, abraçar a tese da invasão do Brasil. (…) Como é que se diz “babaquice” em tupi-guarani?
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Sobre o sistema de cotas e a escravidão:
Eu vejo essa ideia com profunda desconfiança e muito desagrado. Em minha opinião, ela representa um esforço para dividir este país, pela primeira vez, em linhas raciais. Tenho amigos diretores e donos de colégios que estão sendo obrigados a classificar os alunos por raça. Que retrocesso é esse? Já me chamaram e me chamam de vez em quando de negro. Eu me recuso a ser chamado de negro. Não porque tenha vergonha. Eu sou filho de uma família portuguesa pelo lado da mãe, neto de um português pelo lado do pai. A mulher do meu avô paterno era uma mulata acaboclada. O que significa que eu tenho sangue negro. Mas eu me recuso a usar o critério americano que diz que é negro todo mundo que tem uma gota de sangue negro. Ou seja, se o sujeito é filho de um zulu com uma sueca, por que a metade zulu tem de prevalecer? E aí vem o governo com essa bobagem de que não se pode usar a palavra “mulato” porque vem de mula. Vou dizer algo politicamente incorreto: Lula é mulato. Se bem me lembro, o cabelo dele era crespo, encarapinhado, no tempo em que era líder metalúrgico. Já hoje, presidente da República, ele tem cabelos sedosos.
(…) Eu acho muito complicado classificar as pessoas por raças no Brasil. (…) Essa ideia das cotas embute, no fundo, uma visão equivocada: aquela que enxerga a questão da escravidão como um problema de origem racial.
(…) Não existe nada mais falso do que isso. Ao longo da história, os escravos sempre foram os vencidos, e não necessariamente os negros. Na maior parte das civilizações, os escravos eram brancos. Os hebreus foram escravos dos egípcios, por exemplo. Não foram os portugueses que escravizaram os africanos. Eles trouxeram nos navios negreiros pessoas que já haviam sido escravizadas em sua nação de origem. Eram negros escravizando negros. As nações da África do início do ciclo das grandes navegações nunca tinham ouvido falar na existência dos brancos. Acreditavam que a humanidade era negra. Achavam-se, assim, tão diferentes dos vizinhos que falavam outra língua, cultuavam outros deuses e comiam outra comida quanto um inglês se acha diferente de um francês, de um alemão ou de um napolitano. A suposta irmandade entre os negros passou a existir quando eles foram unificados na categoria de escravos.
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* João Ubaldo foi também um dos signatários da “Carta dos 113 cidadãos antirracistas contra as cotas raciais”, entregue ao STF em 2008.
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Minha homenagem aos MAVs do PT e companhia iletrada:
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