terça-feira, 18 de agosto de 2015

O liberalismo faz parte do movimento revolucionário? (CASIMIRO DE PINA )

A pergunta é intrigante e ao mesmo tempo necessária.
Será o liberalismo uma doutrina política revolucionária?
Do ponto de vista da história das ideias, é mesmo uma pergunta irrecusável, apesar da relutância crioula, típica, aliás, de um meio intelectualmente provinciano, em discutir assuntos desta natureza, tidos como distantes e “abstractos”. Ou seja, inúteis.
Uma política esclarecida, gizada no perímetro da Constituição democrática e na procura incessante do “bem comum”, não pode, todavia, fazer tábua rasa de um tema jusfilosófico tão essencial.
O retrocesso social e económico começa, convém esclarecer, na pobreza da Filosofia Política. Os nossos “práticos” de pacotilha ignoram frequentemente este aspecto.
Relendo, há dias, um texto do meu confrade brasileiro Nivaldo Cordeiro, estudioso de vistas largas e colunista do Mídia Sem Máscara, onde publiquei também vários artigos de opinião, pensei novamente no assunto.
Nivaldo é um autor conservador que acredita na Filosofia Perene, de traça aristotélico-cristã.
E diz o seguinte, impressivamente:

“Em 1974, em um majestoso texto publicado na revista ‘The Review of Politics’ (vol. 36, n.º 4), intitulado Liberalism and its history, Eric Voegelin demonstrou que a doutrina liberal faz parte do movimento revolucionário, desde a origem. É ela própria que inaugura a modernidade em todos os campos, do direito à ciência política, passando pela filosofia, economia e demais ciência sociais.
Não ao acaso Voegelin foi buscar no termo gnose a expressão para designar esses movimentos revolucionários, similares aos movimentos religiosos do início da Era Cristã. O essencial da modernidade é a recusa da percepção do elemento transcendente como a condição do real, colocando em seu lugar a pura vontade (razão) humana. O liberalismo, no início, estava na linha de frente da revolução, contra a tradição aristotélica na filosofia e contra os valores cristãos herdados nos costumes. O esforço de gente como Maquiavel, Hobbes, Hume e Locke era para desacreditar Aristóteles, pondo no seu lugar o historicismo fundado na filosofia grega do período helenístico. É bem verdade que as mudanças no interior do cristianismo vinham desde pelo menos o século XII e ganharam relevo com o surgimento do nominalismo. De certa forma, o irracionalismo moderno deriva em linha direta dessa visão deformada do cristianismo, que irá afetar sobretudo o campo do direito e da ciência política. Será pela Escola de Salamanca que sua doutrina formatará a modernidade.” (o sublinhado é meu).
As observações de NC, em diálogo com o grande Voegelin, são penetrantes e obrigam-nos a pensar, sem dúvida.
Convocam, enfim, uma “história de longa duração”, esquecida, levianamente, nestes tempos de pressa quotidiana e frieza espiritual, que Enrique Rojas, num livro instrutivo, identificou como o triunfo do “Homemlight”, esse ser insípido e desprovido de profundidade analítica.
Apesar de tudo, discordo da tese inicial de Nivaldo. E por uma razão bem simples e fundamental.
No interior do pensamento liberal existem várias tradições, com diferenças marcantes.
O liberalismo não é uma tradição intelectual única e linear, como muitos pretendem por aí.
No universo lusófono contemporâneo, quem melhor compreendeu estas coisas foi o prof. João Carlos Espada, director do Instituto de Institutos Políticos, da Universidade Católica Portuguesa.
A tradição liberal anglo-saxónica (de Adam Smith a Tocqueville, passando por Hayek ou Winston Churchill), ao contrário da escola continental-francesa, que esteve na origem dos acontecimentos de 1789, do Terror da Vendeia e, mais tarde, da totalitária Revolução Russa de 1917, não endossa o ponto de vista radical criticado por Nivaldo Cordeiro. Jamais.
A tradição liberal adveniente do iluminismo escocês é, pelo contrário, moderada e relutante, defendendo, como assinala argutamente Espada, o “governo limitado” e a herança espiritual e moral da civilização ocidental.
É esta corrente que esteve, além disso, na génese das democracias mais sólidas, humanistas e progressistas de que se tem memória, propugnando a melhoria gradual das instituições políticas e o equilíbrio entre a tradição e a inovação, sob o governo constitucional representativo.
Um “liberalismo” sem fundações morais resvala, facilmente, na ideologia do mercado (isto é, na livre troca como o valor absoluto), no salve-se quem puder e no triunfo pleno, diga-se, da anarquia. Seria o fim da própria liberdade, legitimando-se, por ex., o tráfico de drogas ou a escravatura, desde que haja “consentimento” dos interessados!
É este, de resto, o projecto ideológico de uma certa esquerda revolucionária e das doutrinas pós-modernas e relativistas, que, a partir de Nietzsche, Pierre Bourdieu ou, entre nós, Boaventura de Sousa Santos, pregam o ódio desvairado contra a civilização judaico-cristã, arquitectando a sua destruição em nome de um futuro utópico mais “igualitário”.
Esta é a fonte de todo o mal. O erro de Nivaldo, pensador culto e estimulante, foi não ter reparado nesse pormenor decisivo.

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