sexta-feira, 21 de agosto de 2015

No Zimbábue não choramos por leões (GOODWELL NZOU)


gnNota do tradutor, Mateus Colombo Mendes:
Cecil? Quem? Quando se fala na morte do leão Cecil, no Zimbábue, e na comoção mundial que isso causou, não precisamos refletir muito para perceber a desproporção dessa reação em relação ao descaso generalizado para com a indústria do aborto americana e o genocídio de cristãos em parte da África e da Ásia, para dar apenas dois exemplos.
Mas não é preciso extrapolar muito. Podemos fazer aquilo que os autoproclamados humanistas e defensores dos pobres e oprimidos nunca fazem: escutar os seres humanos, os pobres e os oprimidos.
Os autoproclamados progressistas do mundo todo querem nos salvar de nós mesmos. Por exemplo: dizem defender os pobres dos interesses do capital, quando, no Brasil, dois em cada três trabalhadores desejam abrir seu próprio negócio. Ou seja, dois terços da população economicamente ativa não querem a defesa de cafetões sindicais, mas querem empreender, participar dos arranjos do capitalismo. Da mesma forma, os multiculturalistas que sustentam que o Ocidente não deve se meter nas culturas tribais não perguntam para as mulheres que têm suas vaginas mutiladas se elas não gostariam de um pouquinho da “opressão” cristã, intransigente no que diz respeito à defesa da vida humana.
O princípio dos exemplos acima é o mesmo quando se fala em África. O que não faltam são benfeitores querendo proteger a cultura, as raízes tribais africanas, a proximidade do povo de lá com suas origens. Ignoram que tudo que os africanos querem é progresso de verdade, evolução moral, cultural, tecnológica e administrativa. Aliás, quando podem, os africanos se apressam em fugir da vida selvagem, das guerras tribais e da miséria, refugiando-se no regaço da civilização ocidental, com toda sua opressão judaico-cristã e capitalista. Que o diga Goodwell Nzou (foto), conterrâneo do leão Cecil. Doutorando em Biociências pela Wake Forest University (Carolina do Norte), o jovem zimbabuano escreveu ao The New York Times e colocou todos os pingos nos “is” dos “mimimis” progressistas pela morte de Cecil.
Segue minha tradução para o texto de Nzou:
No Zimbábue não choramos por leões
Minha mente estava absorta em uma leitura sobre bioquímica genética quando mensagens de texto e postagens no Facebook me distraíram:
“Sinto muito pelo Cecil.”
“Cecil vivia perto de sua casa no Zimbábue?”
“Cecil? Quem?”, me perguntei. Quando assisti ao noticiário e descobri que as mensagens eram sobre um leão morto por um dentista americano, o garoto da aldeia que há em mim celebrou instintivamente: um leão a menos para ameaçar famílias como a minha.
Meu entusiasmo murchou quando percebi que o caçador estava sendo pintado como o vilão. Experimentei, então, a mais extrema contradição cultural destes cinco anos em que estou estudando nos Estados Unidos.
Será que todos esses americanos que estão assinando petições entendem que os leões realmente matam pessoas? Será que entendem que toda essa conversa de que Cecil era “amado” ou “muito querido” pela população local era exagero da mídia? Será que Jimmy Kimmel [1] se emocionou porque Cecil foi assassinado ou porque o confundiu com o Simba, do Rei Leão?
Na minha aldeia no Zimbábue, cercada por áreas de conservação da vida selvagem, nenhum leão jamais foi amado, ou merecedor de um apelido carinhoso. Eles são objetos de terror.
Quando eu tinha nove anos de idade, um leão solitário rondava aldeias perto de minha casa. Depois que ele matou algumas galinhas e cabras e uma vaca, fomos orientados a ir para a escola em grupos e a parar de brincar na rua. Minhas irmãs não iam mais sozinhas até o rio buscar água ou lavar pratos; minha mãe esperava por meu pai e meus irmãos mais velhos (armados com facões, machados e lanças) para escoltá-la até o mato para buscar lenha.
Uma semana depois, minha mãe reuniu a mim e a nove dos meus irmãos para explicar que seu tio fora atacado, mas escapara, com apenas uma perna machucada. O leão acabou com a vida na aldeia. Ninguém mais se reunia ao redor de fogueiras à noite; ninguém mais se atrevia a passear até a casa de algum vizinho.
Quando o leão foi morto, finalmente, ninguém se importou se seu assassino era alguém da aldeia ou um caçador de troféus branco, se ele foi caçado ou morto ilegalmente. Nós dançamos e cantamos porque vencemos uma das mais temíveis bestas e porque escapamos do pior.
Recentemente, um garoto de 14 anos de idade, em uma aldeia não muito longe da minha, não teve a mesma sorte. Enquanto dormia na lavoura de sua família – como os aldeões fazem para proteger a plantação do pisoteio de hipopótamos, búfalos e elefantes –, foi atacado e morto por um leão.
A morte de Cecil tampouco atraiu a simpatia de zimbabuanos urbanos, apesar de viverem longe do perigo. Muitos inclusive jamais viram um leão, uma vez que safáris são um luxo para a população de um país cujo rendimento médio mensal per capita não passa de 150 dólares.
Não me entendam mal: para os zimbabuanos, animais selvagens têm um significado quase-místico. Pertencemos a clãs, e cada clã tem um totem de animal como um ancestral mitológico. O meu é Nzou, um elefante, e, pela tradição, não posso comer carne de elefante; fazê-lo seria como comer a carne de um parente. Mas nosso respeito por esses animais nunca nos impediu de caçá-los ou de permitir que sejam caçados. (Eu sou familiarizado com animais perigosos; perdi minha perna direita por causa de uma picada de cobra, quando tinha 11 anos.)
A tendência americana [2] de romantizar os animais a quem deram nomes de pessoas e dedicar-lhes um caminhão de hashtags é algo ordinário, e parece um circo absurdo aos meus olhos zimbabuanos. (Na última década, 800 leões foram mortos legalmente, por estrangeiros endinheirados que desembolsaram muita grana para realizar tais proezas.)
A PETA [3] exige que o caçador seja enforcado. Políticos zimbabuanos estão acusando os Estados Unidos de encenar o assassinato de Cecil, como uma manobra para comprometer a imagem de nosso país. E americanos que não saberiam apontar o Zimbábue num mapa estão aplaudindo a exigência nacional de extradição do dentista, ignorando os relatos de que um elefante bebê teria sido abatido para o banquete do último aniversário de nosso presidente.
Nós, zimbabuanos nos perguntamos por que os americanos se importam mais com os animais africanos do que com as pessoas africanas.
Não nos digam o que fazer com nossos animais, pois vocês permitiram que seus pumas fossem praticamente extintos. Não lamentem o desmatamento de nossas florestas, pois vocês transformaram as suas em selvas de pedra.
E, por favor, não me ofereçam condolências por causa de Cecil, a não ser que vocês também lamentem pelos aldeões mortos pelos irmãos de Cecil, pela violência política [4] ou pela fome. 

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