terça-feira, 20 de maio de 2014

Laicos, graças a Deus: o individualismo ocidental como herança cristã (RC/João Pereira Coutinho)


“Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” (Mateus 22:21)
A Folha traz hoje excelente coluna de João Pereira Coutinho, para não variar. O conservador português usa um caso recente – mais um – que chocou o Ocidente, ocorrido no Sudão, em que uma mulher será morta por ter se casado com um cristão, para lembrar da importância de um estado liberal laico, que garanta a liberdade e a tolerância religiosas. Mas faz um alerta: tal foco no indivíduo e na separação entre estado e religião não surgiu por acaso, e sim como herança do próprio cristianismo.
A tese não é nova, mas em tempos de confusão entre estado laico e anti-religioso (especialmente anti-cristão), trazer o tema à tona é sempre desejável. As conquistas liberais do Ocidente, resultado de muita luta e debate, da coragem de pensadores como Voltaire, David Hume e John Locke, tiveram como pilares originais a própria Igreja e o cristianismo, como sustenta Larry Siedentop, professor de Oxford. Diz Coutinho:
Quando os liberais clássicos usam certos conceitos nos séculos 17 e 18 —a “dignidade da pessoa humana”, a “fundamental igualdade moral de todos os seres” etc.—, esses autores estão a beber diretamente na fonte religiosa medieval.
E sobre a grande separação que permitiu conceder a Deus o que é de Deus e a César o que é de César (um preceito obviamente bíblico), essa separação começou por ser reclamada pela própria igreja, muito antes de Locke escrever os seus ensaios: a Reforma Gregoriana do século 11 foi o exemplo supremo de como o papado procurou estabelecer limites ao poder do imperador em matérias da exclusiva autoridade da igreja.
Quando, séculos depois, John Locke se insurge contra o alegado “direito divino dos reis”, o ilustre filósofo está apenas a repetir a velha luta antiabsolutista de Gregório 7º.
Por que a tradição liberal, que coloca o indivíduo como finalidade em si mesmo, vingou no Ocidente, enquanto boa parte do mundo oriental continuou sob o jugo do coletivismo, muitas vezes misturando estado e fé? Eis a questão que deve ser respondida, e sem dúvida não é uma resposta simples ou fácil. Mas parece inegável que o próprio cristianismo teve sua cota de contribuição.
Independentemente da aceitação ou não dessa premissa, de que tal liberdade individual depende do legado cristão, parece claro que não é nada trivial chegar lá e, principalmente, preservar tal conquista. Mesmo o Ocidente pariu, em pleno século 20, ideologias coletivistas nefastas como o comunismo e o nazismo, substitutos da religião que voltaram a depositar no estado poder absoluto, total, anulando por completo o indivíduo da equação.
O debate me interessa muito pois, mesmo sendo um liberal sem crença religiosa, receio bastante a postura atual de muitos colegas liberais e libertários, que adotaram um ateísmo militante que julgo infantil e contraproducente. O alvo principal, naturalmente, é sempre o cristianismo, parte inseparável da tradição ocidental, a mais liberal de todas.
O tiro pode sair pela culatra. O ataque às religiões pode parir uma alternativa “laica” autoritária. Esses liberais acabam fazendo um papel de inocentes úteis da esquerda revolucionária, que sempre viu no cristianismo um grande obstáculo ao seu projeto totalitário. O deus secular da era moderna acaba sendo o estado, cujo avanço sobre os mínimos detalhes de nossas vidas tem sido evidente.
Além disso, em nome da tolerância plena, os relativistas acabam aderindo a uma intolerância justamente contra a principal religião ocidental. Tanto faz o islã como o cristianismo? A pobre mulher do Sudão discordaria. Receberá chibatadas e depois será enforcada pelo “crime” de ter a fé “errada”. O islã ainda não passou por seu Iluminismo. Até que ponto isso tem ligação com a própria religião e seu livro sagrado, uma vez que o Corão, ao contrário da Bíblia, não defende em claras passagens a divisão entre estado e religião?

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