segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Da superstição e do entusiasmo (RC)

David Hume
“A coisa mais rara de se encontrar é o fato de existir quem alie a razão ao entusiasmo.” (Voltaire)
Um dos maiores filósofos do Iluminismo foi o escocês David Hume, quem seu amigo Adam Smith considerava “alguém muito próximo do ideal de um homem sábio e virtuoso”. Hume foi um profundo observador da natureza humana, e costuma ser visto como um filósofo cético e defensor do empirismo.
Lutou sempre pela liberdade dos homens, compreendendo que o comércio poderia ser um importante meio para o desenvolvimento e a paz de um povo. Condenou os impostos arbitrários, tal como seu colega Adam Smith. Atacou o fanatismo religioso, assunto que será aprofundado a seguir.
Para Hume, a superstição e o entusiasmo são “formas corrompidas da verdadeira religião”. Os homens receiam uma infinidade de males desconhecidos, e sem objetos reais de terror, inventam objetos imaginários, “aos quais atribui um poder e uma maldade sem limites”. Sendo tais inimigos invisíveis e desconhecidos, os métodos empregados para combatê-los são também incompreensíveis, constituindo em “rituais, proibições, mortificações, sacrifícios, oferendas e outras práticas”. Por mais absurdas e frívolas que possam parecer, tendem a ser sugeridas pela “loucura ou pela patifaria que se aproveita de uma credulidade cega e aterrorizada”. Em resumo, Hume diz: “A fraqueza, o medo e a melancolia são, portanto, ao lado da ignorância, as verdadeiras fontes da superstição”.
Do outro lado, existem aqueles que se deixam levar pela imaginação grandiosa, pelas fantasias que melhor correspondem a seu gosto e disposição momentâneos. Eles irão rejeitar a razão humana como guia, e o fanático irá se entregar cegamente às supostas inspirações do espírito. São seres tomados por uma confiança e presunção acima do normal. David Hume conclui: “A esperança, o orgulho, a presunção, uma imaginação cálida, ao lado da ignorância, são, portanto, as verdadeiras fontes do entusiasmo”.
Grosso modo, assim estaria dividido o mundo pela ótica de Hume: de um lado, supersticiosos, e do outro, entusiastas fanáticos. Ambos igualmente ignorantes, que desprezam a razão humana. Sendo a superstição fundada no medo e na depressão do espírito, ela faz com que o homem recorra naturalmente a qualquer outra pessoa, considerada mais capaz que ele. O supersticioso confia a esta pessoa suas devoções. Ele necessita de algum intermediário entre seu medo e sua crença, nunca confiando em si mesmo. Hume explica através disso a origem da figura dos padres, e afirma de maneira direta que “quanto mais forte for a mistura de superstição, mais alta será a autoridade do sacerdócio”.
Já os entusiastas demonstram grande independência em sua devoção, com desprezo pelos rituais, pelas cerimônias e pelas tradições. Como diz Hume, “o fanático consagra-se a si mesmo, atribuindo à sua fanática pessoa um caráter sagrado muito superior ao que os rituais e instituições cerimoniais podem conferir a qualquer outra”. Para o filósofo, as religiões que partilham do entusiasmo são, desde sua origem, mais furiosas e violentas do que aquelas que partilham da superstição.
Mas em pouco tempo se tornam mais suaves e moderadas, com o declínio do entusiasmo inicial. Já a superstição insinua-se de uma forma gradual e imperceptível, tornando os homens mansos e submissos. Por parecer inofensiva para o povo, ela acaba permitindo o crescimento de autoridade nas mãos dos líderes, que podem se transformar em tiranos através de perseguições e guerras religiosas.
O exemplo citado por Hume é o da própria Igreja Romana, que avançou suavemente em sua conquista do poder, mas que atirou toda a Europa em “lúgubres convulsões” a fim de conservar esse poder. Para Hume, “uma das características essenciais da religião católica romana é que ela precisa inspirar um ódio violento por todas as outras crenças, concebendo todos os pagãos, maometanos e hereges como objetos da cólera e da vingança divinas”. Uma vez com o poder nas mãos, os líderes dos supersticiosos não aceitam muita concorrência.
De forma simplificada, a superstição seria uma grande inimiga da liberdade civil, pois torna os homens mansos e submissos, mais predispostos à escravidão. O antídoto seria um desenvolvido autocontrole, uma grande moderação em todas as paixões, um temperamento equilibrado, justamente como o próprio David Hume era descrito por amigos próximos. Ele mesmo afirmara que “para ser feliz, a paixão não deve ser nem demasiado violenta nem demasiado omissa”. No primeiro caso, o espírito vive em constante agitação; no segundo, ele mergulha numa desagradável letargia. Hume diz: “Para ser feliz, a paixão deve ser alegre e jovial, não sombria e melancólica”.
Para finalizar, as palavras do filósofo uma vez mais: “Quando o temperamento dos homens é suavizado e o seu conhecimento aprimorado, essa humanidade parece ainda mais conspícua e é a principal característica que distingue uma época civilizada de períodos de barbárie e ignorância”.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

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