sexta-feira, 15 de maio de 2015

A importância da falibilidade humana para os liberais. Ou: O PT como seita dogmática (RC)


“O liberal é humilde. Reconhece que o mundo e a vida são complicados. A única coisa de que tem certeza é que a incerteza requer a liberdade, para que a verdade seja descoberta por um processo de concorrência e debate que não tem fim. O socialista, por sua vez, acha que a vida e o mundo são facilmente compreensíveis; sabe de tudo e quer impor a estreiteza de sua experiência – ou seja, sua ignorância e arrogância – aos seus concidadãos”. (Raymond Aron)
O filósofo Karl Popper considerava que encobrir erros é o maior pecado intelectual. Somos humanos e, portanto, falíveis. O poeta Xenófanes, que escreveu cerca de 500 anos antes de Cristo, já havia capturado esta idéia quando disse: “Verdade segura jamais homem algum conheceu ou conhecerá sobre os deuses e todas as coisas de que falo”. Porém, isso não significa relativismo total, pois podemos obter conhecimento objetivo, como o poeta mesmo deixa claro depois: “Os deuses não revelaram tudo aos mortais desde o início; mas no decorrer do tempo encontramos, procurando, o melhor”.
Mas é a possibilidade de estarmos errados que nos faz mais tolerantes com os outros e que nos coloca sempre na busca por mais conhecimento, já que podemos defender algo que se prova errado amanhã. Tal postura é oposta àquela que Epíteto condena quando diz: “É impossível para um homem aprender aquilo que ele acha que já sabe”. Essa abordagem humilde também é fundamental para a pluralidade: “Tolerância é a conseqüência necessária da percepção de que somos pessoas falíveis: errar é humano, e estamos o tempo todo cometendo erros”, disse Voltaire.
O conhecimento humano é possível. Conhecimento é a busca pela verdade, a busca de teorias explanatórias, objetivamente verdadeiras. Mas não é a busca por certeza. Entender que errar é humano é reconhecer que devemos lutar incessantemente contra o erro, mas que não podemos eliminá-lo totalmente. Como diz Popper, “mesmo com o maior cuidado, nunca podemos estar totalmente certos de que não estejamos cometendo um erro”. Essa distinção entre verdade e certeza é fundamental segundo Popper, pois vale a pena sempre buscarmos a verdade, mas devemos fazê-lo principalmente buscando erros, para corrigi-los.
Por isso o método científico é o método crítico, o método da “busca por erros e da eliminação de erros a serviço da busca da verdade, a serviço da verdade”. Alguns acusaram Popper de relativista por conta desta postura, mas ele explica isso com base nesta confusão entre verdade e certeza, e é enfático ao recusar tal rótulo: “O relativismo é um dos muitos crimes dos intelectuais; é uma traição à razão, e à humanidade”. Ser humilde do ponto de vista epistemológico não é o mesmo que ser um relativista.
Agora vamos comparar essa postura liberal com aquela típica de seitas dogmáticas, onde a “Verdade” já foi descoberta. Nesses casos, não há espaço para erros, para divergências saudáveis e construtivas, para evolução. Afinal, tudo já foi respondido, e as crenças são tidas como infalíveis. Alguém que está certo mais de 50% do tempo já pode se vangloriar de sua inteligência, mas o que dizer de alguém que “está certo” 100% do tempo? Nem o maior gênio de todos. Logo, só mesmo um fanático ou embusteiro.
Em Mente Cativa, Czeslaw Milosz faz um profundo relato da destruição da mente independente sob o comunismo, que o autor viveu na pele na Polônia. Para ele, o partido comunista aprendeu com o pior da Igreja Católica a sábia lição de que pessoas que freqüentam um “clube” se submetem a um ritmo coletivo e, assim, “começam a sentir que é absurdo pensar diferentemente do coletivo”. A fé nas crenças do grupo seria mais uma questão de sugestão coletiva do que de convicção individual. Eis o que Milosz relata sobre o assunto:
O coletivo é composto de unidades que duvidam, mas como esses indivíduos pronunciam as frases e cantam as canções ritualísticas, criam uma aura coletiva à qual eles, por sua vez, se rendem. Apesar de seu apelo aparente à razão, a atividade do ‘clube’ surge sob o titulo de mágica coletiva. O racionalismo da doutrina funde-se à feitiçaria e ambos se fortalecem. A discussão livre é, obviamente, eliminada. Se o que a doutrina proclama é tão verdadeiro quanto o fato de dois vezes dois ser igual a quatro, tolerar a opinião de que duas vezes dois é igual a cinco seria indecente.
E assim nascem as seitas fechadas de fanáticos dogmáticos. O que parece comum a estas seitas é uma sensação de superioridade moral que desperta em seus membros. Somente eles compreenderam o sentido da vida, conhecem o destino da história, e encontraram as respostas para os complexos temas que afligem os homens desde sempre. Além desta típica arrogância, as seitas fechadas costumam apelar para um extremo simplismo também:
Séculos de história humana, com suas milhares e milhares de questões minuciosas, são reduzidos a algumas, a maior parte termos generalizados. Sem dúvida, o indivíduo aproxima-se mais da verdade ao ver a história como a expressão da luta de classes em vez de uma série de questões privadas entre reis e nobres. Contudo, precisamente porque tal análise da história se aproxima mais da verdade, ela é mais perigosa. Dá a ilusão do conhecimento pleno; fornece respostas a todas as perguntas, perguntas que meramente andavam em círculos repetindo poucas fórmulas.
Qualquer desvio em algumas premissas pode alterar substancialmente os resultados, criando-se uma nova seita. Como diz Milosz: “O inimigo, de forma potencial, sempre estará presente; o único aliado será o homem que aceitar a doutrina 100%. Se ele aceitá-la apenas 99%, necessariamente deverá ser considerado um inimigo, pois do 1% remanescente pode surgir uma nova Igreja”. Isso explica porque Stalin criou a brilhante tática de rotular todas as idéias inconvenientes aos seus objetivos de “fascismo”. Socialistas alinhados a Moscou eram socialistas, enquanto qualquer outro grupo desleal era chamado de “fascista”. Basta lembrar que Leon Trotsky foi marcado para morrer como inimigo do povo, supostamente por organizar um “golpe fascista”.
No Brasil, desnecessário dizer, é o PT que mais se aproxima dessa postura. As premissas do programa partidário nunca são questionadas, os oponentes são vistos como inimigos, e quando há “malfeitos”, a culpa só pode ser de algum desvio, nunca da própria origem ideológica. O PT precisa ser “infalível” para seus adeptos, para que a aura de pureza e perfeição seja preservada. Essa “infalibilidade” nada liberal foi o tema do artigo de Gustavo Muller publicado hoje no GLOBO, em que ele diz:
De forma mais atenuada, o PT vive esse dilema — digo atenuada porque seria um exagero atribuir a este partido o rótulo de totalitário —, que consiste em tentar atribuir sua crise atual a um desvio das suas origens como partido de classe. Esse caminho de busca pelas origens demonstra que as falhas não estão na concepção filosófica original, e sim no afastamento delas.
Já foi apontada por uma vasta literatura a originalidade representada pelo PT no cenário partidário brasileiro do final do regime militar. Partido formado por laços orgânicos em que se abrigaram sindicalistas, Comunidades Eclesiais de Base e intelectuais, o PT lutou contra a ditadura, mas sempre se mostrou arredio com relação à adesão às regras do jogo democrático. A “democracia representativa” ou a “democracia burguesa” era vista como um instrumento para alcançar uma democracia substantiva, o que unia na legenda uma multiplicidade de vertentes marxistas.
Após três derrotas consecutivas nas eleições presidenciais, sob o comando de José Dirceu, o PT fez uma inflexão ao centro e lança mão da “Carta ao povo brasileiro” e busca uma aliança “estratégica” com setores da direita que foram apoiadores do regime militar. Com o escândalo do mensalão, logo se percebeu que essa inflexão ao centro era meramente uma estratégia eleitoral. O PT, com seu desprezo pelo jogo democrático, usou da corrupção das instituições representativas para não precisar partilhar o poder. Com o escândalo denunciado de dentro, e com um quadro econômico favorável, o PT foi aos poucos adotando o modelo econômico que estava no seu programa original, com intervenção estatal, expansão desmensurada do gasto público e o desmantelamento das agências reguladoras. E ainda, fazendo jus à megalomania populista, lançou mão da construção de “estranhas catedrais”.
Hoje, com a má gestão da economia, associada a sucessivos escândalos de desvio de dinheiro público, o PT ensaia o discurso da volta às origens. Mais uma vez, não foi a doutrina filosófica que falhou, mas sim o suposto desvio. O estranho nessa história é que, no campo político, o PT nunca teve “duas almas” e, no campo econômico, o que deu errado foi exatamente a adoção de concepções que já eram do partido. Se há infalibilidade da doutrina, o jeito é negar a realidade, custe o que custar.
A negação da realidade, a deliberada fuga dos fatos incômodos, essa é a típica postura de uma seita fechada, arrogante e dogmática. Os liberais adotam – ou deveriam adotar, pois há os dogmáticos que se dizem liberais também – uma abordagem totalmente distinta, mais humilde, reconhecendo-se a premissa da falibilidade, que está na origem de toda a tolerância à pluralidade dentro de certos limites (em que a própria tolerância é resguardada).
Por sermos falíveis, o liberalismo prega a democracia republicana, as instituições que limitam o poder do estado, a tolerância, a pluralidade, as concessões e contemporizações com os adversários ideológicos, que não precisam ser vistos como inimigos mortais, mas sim como indivíduos que abraçam valores diferentes que devem, sempre que possível, ser levados em conta. Errar, afinal, é humano. O que é asinino é nunca aprender com os erros!

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