segunda-feira, 9 de junho de 2014

Dilma quer saber quais foram as falhas da Copa. Nós mostramos. (ERICK VIZOLLI)

Este artigo foi escrito para você, que possui um documento com a designação “brasileiro”, não esteve em coma durante os últimos cinco anos e não recebe mensalmente qualquer valor a título de bolsa-militância. Se você se enquadra nesse perfil, provavelmente critica a organização da Copa do Mundo, e com razão: a imensa maioria das obras relacionadas ao evento atrasou, não ficou pronta a tempo ou simplesmente foi cancelada. Além disso, quase todas envolveram uma estimativa inicial de custos situada muito abaixo dos valores reais.
Se esse é o seu caso, sinto-lhe dizer, mas você foi desafiado – e desafiado por ninguém menos que a Presidente da República, que, em recente entrevistaa um telejornal, não só afirmou que “toda a estrutura para os jogos está pronta”, como também “cobrou que os críticos apontem o que não foi entregue”. Pois não, dona Dilma. É claro que o fato de termos uma presidente que não conhece as falhas da própria administração é um tanto quanto incômodo, mas a “cobrança” foi gentil e não há por que não respondê-la.
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Saber “o que não foi entregue” é fácil. Peço ao leitor que tenha a bondade de conferir o 1º Balanço da Copa, mais especificamente a partir da página 37. Não se preocupe, não é nada excessivamente técnico. Trata-se de um documento de divulgação preparado pelo Ministério do Esporte em jan/2011, onde são expostas informações básicas a respeito de 95 projetos para a Copa, incluindo obras de mobilidade, estádios, portos e aeroportos.
O que não foi entregue está aí: BRTs em Belo Horizonte, VLTs em Cuiabá, Brasília e Manaus, monotrilho em São Paulo, reformas de avenidas e terminais em Curitiba… a lista é enorme, e as exceções são pontuais. São tantos projetos que um levantamento completo e específico se torna extremamente tortuoso. O Google pode ajudar um pouco: a expressão “não ficará pronto para a Copa” retorna 55.000 resultados; “não ficou pronto para a Copa”; 13.000. Em inglês, “will not be ready for World Cup” dá 6.670 páginas (aliás, #nãovaiterCopa: 72.000).
No que diz respeito às obras de mobilidade, a questão é tão complicada que as estatísticas conflitam entre si. Por exemplo: uma pesquisa do portal G1no final de 2013 apontou que 75% delas estavam atrasadas ou tinham sido simplesmente descartadas; três meses depois, um levantamento do Globo Esportechegou a uma conclusão ainda pior, segundo a qual apenas 18% fora entregue. Sugiro ao leitor que dê uma olhada nas respectivas reportagens, que apresentam relações bem completas a respeito do tema.
Os atrasos são mais evidentes no que se refere a estádios. Todos eles chegarão ao Mundial em condições de receber partidas, mas isso não ameniza a incompetência administrativa: basta notar que, a cinco dias do primeiro jogo, as “Arenas” da Baixada (Curitiba), Corinthians (São Paulo) e Pantanal (Cuiabá) ainda passam por obras. Mesmo estádios “prontos” apresentam problemas: no momento do fechamento deste texto, por exemplo, o Beira-Rio (Porto Alegre) ainda não tinha alvará de funcionamento.
Com relação aos aeroportos, a coisa é calamitosa. Em fev/2014, já se dizia que apenas as reformas em Cuiabá e Fortalezaficariam prontas a tempo. Nem isso ocorreu: à beira da Copa, aqueles que forem a essas cidades deverão se contentar com soluções provisórias (links aquiaqui). Alguns dos “remendos” feitos para acomodar a demanda da Copa beiram o ridículo, como esta “novíssima” passarela de embarqueem Curitiba.
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Área de embarque do Aeroporto Internacional de Brasília, completamente
alagada, há menos de 10 diaspara o início da Copa do Mundo.
Obviamente, nem todos esses problemas podem ser atribuídos diretamente a Dilma e sua máfia: há uma grande parcela de contribuição dos governos estaduais e municipais para a situação, já que a execução e o orçamento de grande parte das obras estavam sob sua responsabilidade. Mas essa constatação de forma alguma exime o governo federal de culpa: nele teve origem grande parte do capital “investido” em mobilidade e estádios. Além disso, os aeroportos brasileiros são administrados por uma estatal que a ele pertence: a Infraero.
Nunca é demais lembrar, contudo, que atribuir a culpa pelos atrasos e irregularidades ao governo federal, estadual ou municipal é uma briga de “Estado x Estado”. E o resultado dessa briga não é a designação do “mais competente”, e sim a do “menos incompetente”: toda e qualquer administração pública de bens está sujeita a determinadas falhas, as quais não existiriam se o governo não estivesse metido na história.
Abaixo, aponto quatro dessas falhas. Não são problemas específicos do governo brasileiro ou petista: qualquer estrutura estatal os possui. Mas, no caso concreto, eles ajudam a explicar em grande parte o porquê do fracasso das obras para a Copa.
1. O governo é um ignorante econômico
Se você já tentou abrir um negócio próprio ou conhece alguém que fez isso, sabe muito bem que a sua administração exige a consideração de um grande número de variáveis: oferta e demanda do bem que se pretende negociar, localização dos fornecedores e clientes, preços, publicidade etc.
Dito isso, qualquer um que queira construir um negócio rentável sabe que deve fazê-lo em um local que atraia a maior clientela possível, ou possivelmente acabará no prejuízo. Isso vale para todos, desde o grande industrial até o pequeno empreendedor. E é por isso que, por exemplo, vemos pipoqueiros nas praças que se situam mais ao centro das cidades e não naquelas localizadas em regiões mais afastadas; ou malabaristas nos semáforos dos cruzamentos mais movimentados e não nos de bairros residenciais. Escolher uma localização incorreta para o seu negócio é suicídio comercial. Tais ideias, evidentes para qualquer pessoa com um mínimo de espírito empreendedor, escapam completamente ao governo.
Analisemos a questão por meio de um exemplo. A cidade de Manaus não emplaca uma equipe na Série B do Campeonato Brasileiro há 8 anos e o público total do campeonato local (de todas as partidas somadasnão alcança 38.000 pessoas. Algo semelhante ocorre com o estadual matogrossense, cujo recorde de público em 2014 foi 3.569 pessoase sequer ocorreu em Cuiabá. Brasília tem uma situação similar. Um investidor privado, portanto, jamais teria interesse em desperdiçar dinheiro com estádios nessas cidades: o prejuízo seria certo.
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Lance de Cuiabá x Luverdense, final do Campeonato Mato-Grossense desse ano.
Mas não foi essa a noção que norteou o planejamento da Copa. O que ocorreu foi exatamente o contrário: sabia-se desde o início da inviabilidade financeiradesses projetos, e exatamente por isso jamais se cogitou executá-los de forma integralmente privada ou por meio de parceria-público privada (o que ocorreu em Belo Horizonte, Natal, Fortaleza, Recife e Salvador). Preferiu-se desde o início bancar o prejuízo que se sabia que iria ocorrer com dinheiro público – leia-se, com dinheiro de impostos. E a situação poderia ter sido pior: inicialmente, cogitava-se uma Copa do Mundo em 17 cidades.
A consecução de projetos públicos costuma ser acompanhada da realização de estudos de viabilidade econômico-financeira, que em tese deveriam ser capazes de evitar esse tipo de aberração. Mas as regras que disciplinam a confecção de tais estudos são impostas e julgadas pelo estado: na prática, isso significa que ele pode burlá-las como bem entender. Nos domínios do estado, a lógica econômica é substituída pela vontade política, e isso leva inevitavelmente a um desperdício de recursos. Isso foi evidente no caso da Copa do Mundo.
2. O governo não admite os próprios erros: prefere disfarçá-los
A notícia foi publicada em vários jornais brasileiros e certamente não chegou a surpreender quem quer que fosse: em Natal (RN), um viaduto próximo ao estádio da Copa não foi concluído a tempo. A solução encontrada para o problema? Maquiagem, é claro – no caso, um tapume de cinco metros de altura. Em Cuiabá, grama está sendo replantadano canteiro de obras daquilo que seria o VLT: a previsão é que logo após o Mundial ela seja retirada, para que as obras continuem. Em Porto Alegre, a Prefeitura, o Internacional e a construtora do estádio gastaram meses discutindo quem seria o responsável pela remoção do entulho das obras, e ainda não resolveram a questão. Às vésperas do Mundial, e diante desse impasse, chegou-se à conclusão de que o melhor a se fazer seria disfarçar a pilha de resíduos, que está sendo compactada e virará um estacionamento para 900 carros. A sujeira só será removida do local após a competição.
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Beira-Rio, em Porto Alegre.
Situações similares se repetem em praticamente todas as cidades-sede: prefere-se disfarçar a ineficiência estatal a admiti-la. A coisa fica ainda pior quando a “maquiagem” que se quer dar não é um disfarce “físico”, mas um disfarce de discurso. Em um pronunciamentoem cadeia nacional realizado em 21/06/2013, Dilma assegurou aos brasileiros que o dinheiro empregado na construção de estádios não saía do orçamento público federal – sendo que, à época, mais de 1,1 bilhão de reais já estavam comprometidoscom as obras. Ao final, constatou-se que o dinheiro público (não só federal, ressalte-se) pagou 97% do valor dos estádios.
Não poderia ser diferente. Confessar um erro perante o eleitorado é prejuízo político na certa para quem o faça. Subterfúgios acabam sendo a única saída “honrosa” para a questão, ainda que a utilização desse expediente custe ainda mais credibilidade perante um público mais esclarecido – no caso, aquele que acompanhou todo o desenrolar do planejamento para a Copa.
3. O governo é megalomaníaco
Chegou a hora de falar sobre ele. É impossível escrever sobre as falhas da Copa 
sem
 abordar o projeto mais ambicioso para o evento, a mais ousada intervenção já idealizada no país em termos de transporte, o legado definitivo que iria definitivamente jogar a Banânia no Primeiro Mundo. Exatamente o que você está pensando, caro leitor: o Trem de Alta Velocidade Campinas/São Paulo/Rio de Janeiro, mais conhecido como “Trem-Bala”.

A ideia remonta a 2007, mas foi em 2009 que realmente ganhou força propagandística. À época, mencionava-seque uma linha de alta velocidade entre as três cidades estaria pronta até 2014 e seria posteriormente estendida para Belo Horizonte e Curitiba. O projeto, no entanto, desde o início estava fadado a dar errado.
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Façamos um exercício similar ao que propus acima. Digamos que você queria fazer concorrência aos pipoqueiros do centro da cidade abrindo uma barraca que venda um produto ligeiramente mais caro: caviar importado do Mar Cáspio. A primeira dificuldade que você enfrentará será inerente aos custos “naturais” do projeto: a mercadoria já é cara por si só, e está sujeita a um preço ainda maior por ter de viajar meio mundo até chegar às suas mãos. Ainda que você tenha dinheiro para importá-lo, provavelmente a barraca não encontrará muitos consumidores dispostos a pagar um preço adequado. Com a falta de demanda, seu negócio passará a enfrentar um dilema: se você baixar os preços além daquilo que cubra os custos já incorridos, em um esforço desesperado para atrair mais clientela, inevitavelmente terá prejuízo. Se resolver aumentá-los para compensar a falta de clientes, acabará por perder os poucos consumidores que já possuía. Em suma, o negócio é inviável.
Transportando o exemplo para uma escala infinitamente maior, tem-se exatamente o que ocorreu com o trem-bala brasileiro: por se tratar de um investimento caro (R$ 35 bi) e de dificílima amortização, ninguém se interessou em construí-lo. De fato, o investimento em uma obra dessa magnitude não se paga facilmente: se as tarifas forem baixas demais, o pagamento da obra demorará décadas para ocorrer; se forem muito altas, os usuários preferirão outros meios de transporte e os trens andarão vazios.
A situação é mais grave, na verdade: o preço não seria determinado pela empresa responsável pela operação do trem, e sim pelo governo – seria aquilo que se chama de “tarifa”. Se por ignorância, má-fé ou “vontade política” o governo errar um mínimo que seja no seu cálculo, para cima ou para baixo, acabará por jogar todo o equilíbrio do contrato no lixo. Em uma situação dessas, compreende-se o fato de nenhum investidor querer se enfiar no negócio: a chance de algo dar errado é muito grande. E isso porque nem considerei os demais fatores inerentes ao “riscoBrasil”: regulamentações excessivas, impostos, encargos trabalhistas, greves…
Tudo isso explica o fato de simplesmente ninguém ter aparecidono primeiro leilão do trem-bala brasileiro, em julho de 2011 (o qual, aliás, já estava atrasado: a previsão inicial era de que ocorresse em maio de 2010). Após esse fiasco, o projeto foi reformulado e sucessivamente adiado, de tal modo que atualmente se fala que a obra ficará pronta apenas em 2020. Provavelmente, nem isso.
Francamente, esperemos que isso não ocorra, e que o projeto seja definitivamente abandonado: no mundo todo, trem-bala é um negócio extremamente caro e deficitário. Apenas duas linhas (Tokyo-Osaka e Paris-Lyon) dão lucro, e ainda assim com sérias ressalvas. Todas as demais (presentes em 11 países) apresentam prejuízos, e sua operação depende de subsídios estatais – leia-se, dinheiro tungado dos contribuintes. E mais um “investimento” furado sustentado por impostos é tudo o que o Brasil não precisa atualmente.
O fato de o governo federal ter cogitado e prometido a entrega de um investimento tão insustentável evidencia mais uma falha do planejamento da Copa: a megalomania, aquele transtorno psicológico no qual o paciente crê exageradamente em seus próprios poderes. O trem-bala é um exemplo extremo (apesar de verdadeiro), mas ela esteve presente em todo o processo: basta voltar ao início deste artigo e constatar que em 2011, há apenas três anos, 95 obras de médio e grande porte eram planejadas para o evento. É algo impossível de ser executado, mesmo em cenários extremamente otimistas – e esse nunca foi o caso, dado que à época já haviam atrasos consideráveis. A coisa toda estava fadada ao insucesso desde o início.
4. O governo acha que propaganda é capaz de mudar a realidade
A megalomania governamental, no entanto, não está presente apenas em obras públicas impossíveis. É possível verificar seus traços também nas ações de propaganda relacionadas à Copa do Mundo.
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Se você já entrou em contato com a publicidade governamental relacionada ao tema, principalmente nas redes sociais, já deve ter se deparado com a expressão “Copa das Copas” – o mais recente slogan adotado pelo governo para promover o Mundial, bolado pelo marqueteiro Nizan Guanaes no final de 2013. A imagem que se tenta passar através dele é, evidentemente, a de grandeza e orgulho nacional. A realidade, porém, mostra que o mote não é verdadeiro nem falso, e sim completamente irrelevante.
Com tanta ineficiência no planejamento do evento, acabamos por nos esquecer que o objetivo de uma Copa do Mundo é um só: ver 32 seleções de futebol jogando bola. O que faz uma Copa ser a “Copa das Copas” é exatamente isso: o nível do futebol que se vê em campo. Nada mais do que isso. Algo que escapa a qualquer controle governamental.
Dou minha opinião sobre o assunto – ciente de que, como tudo no mundo do futebol, ela é extremamente subjetiva. Em 2002, Japão e Coreia fizeram uma Copa do Mundo extremamente organizada, de infraestrutura praticamente impecável. O legado “futebolístico” do evento, no entanto, foi pífio: as favoritas França e Argentina fizeram campanhas humilhantes e foram eliminadas logo na primeira fase; no restante do torneio, erros deploráveis de arbitragem chegaram ao ponto de colocar a fraquíssima Coreia do Sul na semifinal. Por outro lado, a Copa de 2010 teve uma organização terrível, muito similar à brasileira – o nível técnico da competição, contudo, foi alto. Em nenhum dos casos a infraestrutura teve qualquer importância: anos após, ninguém se lembra dela.
Obviamente é arriscado fazer previsões, mas várias lesões de jogadores e um sorteio de grupos com resultados bizarros tendem a fazer o Mundial brasileiro ser qualquer coisa, menos a “Copa das Copas”. E isso não tem absolutamente nada a ver com sucessos ou falhas no esforço governamental para a organização do evento.
Ok, então a infraestrutura é irrelevante, mas e a famosa “paixão do brasileiro por futebol”? Sinceramente, a ligação do slogan “Copa das Copas” a esse fato não faz sentido algum. Em primeiro lugar, porque se trata de uma constatação extremamente overrated: como se sabe, o Campeonato Brasileiro tem uma média de público inferior ao Football League Championship, a segunda divisão inglesa. E, mesmo que se considere tratar de um povorealmente apaixonado por futebol, fatores como a “animação da torcida” não contribuem em nada para a qualidade de um evento: uma prova rápida disso é Copa de 2010 e a irritante vuvuzela.
Vai uma Caxirola aí?
Vai uma caxirola aí?
Diante de tudo o que foi exposto acima, fica evidente para qualquer um que a Copa, ao menos no que se refere ao planejamento governamental de obras, “intervenções” e “legados”, deu errado. Deixo para o final o dado mais aterrador sobre o tema: o governo brasileiro afirma que o gasto com a competição supera 25 bilhões de reais.
Todo esse dinheiro, é claro, significou prejuízosnos demais setores da economia. E investidores privados não se animaram com a “oportunidade” de negócios – por que exatamente alguém gastaria milhares de reais ampliando seu hotel ou restaurante para ser usado apenas uma vez? A imagem do governo perante grande parte do eleitorado foi prejudicada, e praticamente não houve “legado” em obras para a população. Mesmo o pouco que houve poderia muito bem ter sido executado pelo governo sem a Copa – ou, melhor ainda, inteiramente pelo setor privado.
O que fazer diante dessa informação? Possivelmente nada: o dinheiro já está gasto, e agora resta esperar que esta de fato possa ser a “Copa das Copas” – não por qualquer intervenção mágica governamental, mas pelo nível do futebol a ser apresentado em campo, algo completamente independente. Meu conselho é: agora que o estrago já está feito – e sim, ele é enorme – trate de assistir a Copa do Mundo e torcer para a sua seleção. Divirta-se, enfim. Mas, por favor, não seja enganado novamente pelo governo.

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