quarta-feira, 1 de abril de 2015

Roger Scruton x Sartre: do Nada ao Inferno (RC)

Sartre e Simone com o assassino Che Guevara
Nenhum pensador europeu é mais verdadeiramente representativo daintelligentzia pós-guerra que Jean-Paul Sartre, e nenhum atesta melhor a consciência coletiva desta intelligentzia como uma consciência do Inferno. Ao mesmo tempo, os escritos de Sartre são charmosos, mefistofélicos, seduzindo o leitor com um tipo de graça diabólica em direção ao altar do Nada, onde tudo que é humano é lançado às chamas.
E ver um talento tão monumental dar expressão a tamanha falsidade é entender o poder da ideologia esquerdista e também a condição perturbadora que a inspira.
Um verdadeiro romancista poderia ver em Roquetin o que ele é: um adolescente moralista que traveste seu vazio em algo sagrado. Um tal romancista teria visto a pequenez humana de Roquetin, e reconheceria nele o pecado capital, e a suprema infelicidade, do orgulho. Mas Sartre partilha do vício de seu herói, e, em vez de se distanciar dele, ele busca, pelo contrário, dignificá-lo com os mais elevados atributos teológicos. Ele deseja trazer para se mesmo a salvação, a partir da substância dura de sua descrença.
Não há natureza humana, Sartre argumenta, já que não há Deus para haver uma concepção dela. Essências, como construções intelectuais, desaparecem junto da mente que as conceberia. Nossa essência não é determinada por nenhuma moralidade universal, e não existe nenhum destino pré-dado que poderia conter uma visão de natureza humana.
Para Sartre não há salvação no amor ou na amizade, todas as relações com os outros são envenenadas pelo corpo – o em-si – que encarcera nossa liberdade.
E a fria consciência da corrupção que leva o cristão a Deus leva Sartre, que não vê Deus, a seu santuário interno e solitário, onde o self é reverenciado em meio a desordenados ícones de seu fútil mundinho de faz-de-conta.
Ao liberar o gênio da autenticidade, ele pode, então, fazer sua ordem secreta, e sua ordem é destruição. Nada real pode ser “autêntico”. O autêntico define-se sempre em oposição aos outros – em oposição ao mundo que eles criaram e no qual eles se sentem em casa.
Roger Scruton
É exatamente esta postura da negação que conduz o self autêntico a identificar-se com a filosofia revolucionária de Marx. Pois mesmo se esta identificação é supremamente injustificada, ela oferece, no entanto, a mais fácil libertação de uma situação de intolerável dor: a situação de um ser completamente sozinho em um universo sem deuses.
Em outras palavras, o marxismo destrói a realidade em favor de uma ideia.
A retórica da totalidade esconde o lugar vazio no coração do sistema, onde Deus deveria estar. Para Sartre, a totalidade não é nem um estado nem um conceito, mas uma ação. Não reside na natureza das coisas, mas é trazida a elas pela fúria “totalizante” do intelectual. A totalização é concebida em termos existencialistas, como a ação transcendental do self. Mas é também um momento milagroso de unidade, no qual o corte na realidade extingue-se e o mundo é curado. Esta união mística, como a união da lança e do Graal, junta as metades nostálgicas de um mundo clivado. Quando o intelectual chegar a tocar as candentes mãos do proletariado, então a mágica má da ordem “burguesa” está posta de lado e o mundo se completará.
É claro, é sempre como objetos materiais que nos relacionamos uns com os outros, e se O Ser e o Nada é um guia para a condição humana, então nenhuma transição para as “relações socialistas de produção” poderia superar esta incapacidade que nossos corpos mesmos impõem. Em todo caso, já não estamos cansados desta condenação tautológica da realidade capitalista, que define o que pode ser comprado como uma coisa e então diz que o homem que vende seu trabalho, ao tornar-se uma coisa, deixa de ser uma pessoa? De qualquer maneira, deveríamos reconhecer que, de todas as defesas mentirosas oferecidas para a escravidão, esta é de longe a mais perniciosa. Pois o que é trabalho não comprado, se não o trabalho de um escravo?
Vemos emergir de suas páginas as mesmas destrutivas fantasias, as mesmas falsas esperanças, o mesmo ódio patológico do imperfeito e do normal, que caracterizam todos os seguidores de Marx, de Engels e Mao.
As relações de mercado não são a expressão da liberdade econômica, mas a concreta sujeição do homem ao diabólico reino do Outro. A outridade envenena todos os benefícios que o capitalismo nos oferece: nossa democracia não é democracia verdadeira, mas meramente a “democracia burguesa”, e quando um homem vota sob nosso sistema de governo ele sempre vota como o Outro, e não como ele mesmo. Contra estas mentiras desgastadas, Sartre tenta novamente induzir nossa cumplicidade à percepção marxista da história moderna.
É inevitável que um jacobino moderno use a palavra “povo” como Sartre usa – para sugerir uma unidade que poderia realmente “escolher o socialismo” e construí-lo com suas próprias mãos coletivas, ou no mínimo, coletivizadas. E é inevitável que este “povo” fosse visto como uma forma de unanimidade. A alternativa – ação coletiva na ausência do acordo total – se parece muito com uma “instituição” para que Sartre chegue a reconhecê-la pelo que ela é, a saber, o melhor que está à disposição dos homens.
O operário é reduzido a mero instrumento, não pela labuta do capitalismo, mas pela retórica ardente do intelectual de esquerda. O operário é um meio para a exaltação intelectual, e pode ser abolido sem escrúpulo se não cumprir sua tarefa. É esta aniquilação totalmente intelectual do trabalhador meramente empírico que tornou possível seu extermínio em massa no mundo meramente empírico.
É com uma sombria incredulidade que alguém lê sobre seu apoio a regimes de extermínio que uniram os intelectuais e os trabalhadores somente em lugares de “reeducação”, nos quais eles arquejaram as suas últimas horas miseráveis.
A peregrinação de Sartre é um exemplo soberbo da busca revolucionária. Como Marx, ele estava cativado por um ideal de emancipação absoluta – de relações entre pessoas que não obedecem lei alguma exceto àquelas que são livremente escolhidas.
Ele comprometeu-se com a destruição e, mais ainda, com a destruição da liberdade limitada e imperfeita que ainda podemos atingir – uma liberdade distante, ainda, da “liberdade total” da qual gozam os sujeitos no império soviético. Desejando somente o que é abstrato e “totalizado”, ele condenou o que é real à miséria e à servidão.

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