terça-feira, 19 de janeiro de 2016

O filme “A Grande Aposta” e os mercados - os reais culpados tiveram um passe livre ( Jeffrey Tucker)



moviesthebigshortcast.jpgO filme "A Grande Aposta" (The Big Short) — baseado no livro homônimo de Michael Lewis sobre a crise financeira de 2008 — é ao mesmo tempo excelente e terrível.  Em termos de narrativa sobre uma bolha financeira, e de todas as manias que ela gera, o filme é espetacular.  Mas em termos de analisar as reais causas dessa bolha ou mesmo de apresentar um caminho para soluções futuras, o filme é um desastre.
Não há dúvidas de que o filme está tendo um grande impacto e está sendo propagandeado como "o filme" a ser visto sobre o evento econômico desta geração.  Os críticos do The New York Times afirmaram que o filme merece ser o ganhador do Oscar de melhor filme.  Paul Krugman concorda, dizendo que: "Creio que o filme faz um excelente trabalho em mostrar de maneira divertida as trapaças de Wall Street... o filme mostra corretamente as partes essenciais da crise financeira."
Por que os odiadores do mercado adoraram
Krugman e companhia gostaram do que viram porque o filme deixa de fora — sim, ignora por completo — qualquer discussão sobre o principal culpado pela crise financeira.  Sim, os bancos forneceram crédito fácil para todos, mas quem possibilitou esse crédito fácil? 
O culpado da crise financeira não foi a "ganância" de Wall Street, mas sim as políticas monetárias e de crédito fácil do Federal Reserve (o Banco Central americano) e do próprio governo americano.  Wall Street ficou bêbada, mas quem serviu as bebidas foi o Fed e quem obrigou as pessoas a se embebedaram foi o governo americano por meio de políticas voltadas para a facilitação da aquisição de imóveis.  É estranho que esses dois tenham ganhado um passe livre no filme.  O filme, aliás, mal alude a qualquer fator exógeno.
Por isso a turma defensora de mais regulação está vibrando.  Aos espectadores do filme não é fornecida nenhuma informação explicativa sobre os verdadeiros fatores causadores da crise financeira.  Consequentemente, esse vácuo é preenchido pela mera afirmação de que os bancos simplesmente adoram espoliar as pessoas.  [N. do E.: o que é verdade, como detalhado neste artigo; mas culpar apenas os bancos é desonestidade intelectual e pura manifestação ideológica].
Para ser franco, se você for assistir a esse filme já possuindo algum conhecimento sobre economia e sobre política monetária, todo o resto da narrativa fará sentido.  É óbvio que Wall Street fez besteira e nem poderia ser diferente, considerando todas as políticas criadas pelo governo americano para facilitar e incentivar empréstimos para a aquisição de imóveis.  Não há intervenção que não gere consequências não-premeditadas.
No entanto, se este filme fosse a sua primeira e única exposição à história da crise financeira, e você nada soubesse sobre ela, é fácil entender por que uma pessoa sairia da sala do cinema pensando: "Nossa, Wall Street e todo o sistema capitalistas não passam de um grande esquema fraudulento!  Precisamos desesperadoramente de um governo poderoso para controlar tudo isso!"  Sendo que foi o governo quem incentivou tudo isso...
Mas há também pontos positivos e temos de ser justos: o filme também mostra, e de maneira competente, como os grandes bancos comerciais, os bancos de investimento, as agências de classificação de risco e os reguladores trabalharam em conluio para aproveitarem ao máximo o período do inchaço da bolha e, ao mesmo tempo, postergarem até o ultimo minuto possível o estouro da bolha e a subsequente correção.
Como novas regulações iriam corrigir isso é algo que ninguém explica — afinal, quem irá regular os reguladores?
O mérito do filme
A maior virtude de A Grande Aposta está em explicar os bizarros produtos financeiros que haviam se tornado moda antes da crise.  E o filme faz um trabalho magistral em explicar como funciona um "título lastreado em hipotecas" (mortgage-backed security — MBS), e como este título se transformou em uma "obrigação lastreada em dívida" (collateralized debt obligation — CDO), e em seguida em um "CDO sintético", sendo então despejado no mercado como um "investimento de qualidade" (por obra e graça das agências de classificação de risco, que usufruem um monopólio concedido pelo governo).
Analisando-se puramente como uma peça de jornalismo descritivo, o filme faz um grande serviço ao desnudar os disparates financeiros — que haviam se tornado moda à época — e revelar toda a insustentabilidade da bolha imobiliária e do boom financeiro da primeira metade da década de 2000.
Adicionalmente, qualquer filme que consiga descrever de maneira interessante o mercado financeiro e os ciclos econômicos é digno de, no mínimo, uma menção honrosa.  Tais filmes nos lembram do quão importante é a economia em nossas vidas.  A economia é o instrumento teórico que nos permite entender como os seres humanos estão evoluindo em sua permanente batalha contra a pobreza, contra a insegurança, contra as doenças e contra a morte prematura, e é por isso que o assunto merece ser estudado por qualquer pessoa.
Há outro aspecto excelente em A Grande Aposta.  O filme sutilmente transforma especuladores — mais especificamente aqueles que fazem "vendas a descoberto" (os short-sellers), apostando que os valores financeiros das ações e dos títulos irão cair — em heróis.  Já era hora.  Especuladores sempre foram demonizados como inimigos do povo.  Já o filme, corretamente, mostra que especuladores são pessoas dispostas a correr altos riscos baseando-se em uma opinião majoritariamente contrária à opinião dominante, desta forma efetuando o valioso feito de moderar a exuberância quando esta se torna injustificada.  Sendo assim, é interessante constatar que a esquerda, ao vibrar com o filme, está explicitamente concedendo aos especuladores status de heróis.  Que bom.
Estranhamente, o filme critica a ganância e a riqueza de Wall Street, mas acaba celebrando um punhado de especuladores espertos que ganharam bilhões de dólares apostando contra milhões de infelizes compradores de imóveis.  Talvez de maneira não intencional, A Grande Aposta despreza décadas de retórica esquerdista contra os especuladores — especialmente contra os especuladores que fazem "vendas a descoberto", as quais derrubam os valores dos ativos —, e os transforma em gênios quem merecem cada centavo de seus ganhos.
Krugman pergunta se o filme mostra a história de maneira correta, e ele próprio responde que sim, embora alerte que os elos causais nem sempre são explicitados.  Ele está correto quanto a isso.  A Grande Aposta é uma grande história sem uma teoria coerente.  Qualquer que seja a teoria que você traga para o filme, esse será a teoria que você verá sendo reforçada pela narrativa.
Assim como uma perspectiva keynesiana pode ser lida no filme, uma perspectiva pró-mercado sobre como o colapso de um setor imobiliário — que foi artificialmente inflado pelo governo e pelo Banco Central — deixou de joelhos alguns dos mais poderosos agentes de Wall Street também pode ser encontrada.
A narrativa ausente
Sem uma teoria robusta, A Grande Aposta trata as atividades no mercado financeiro antes do colapso como se fossem apenas um esquema malicioso.  Os corretores imaginavam que haviam descoberto um caminho mágico para a riqueza infinita e se tornaram horrivelmente céticos em relação à artificialidade de tudo aquilo, empurrando papeis sem nenhum valor para compradores que nada suspeitavam.  É essa percepção que sustenta os reiterados pedidos de processos criminais contra os presidentes dos bancos e das corretoras.
Para um olhar mais realista, e mais humano, da maneira como os mercados financeiros funcionam, o filme Margin Call - O Dia Antes do Fim (N. do E.: em exibição no Netflix) fornece uma excelente "visão dos bastidores" durante um dia dramático em um fundo de investimentos.
Essas empresas não eram, como um todo, conduzidas por criminosos.  Ao contrário, elas estavam simplesmente obedecendo aos sinais de mercado que chegavam até elas, exatamente como deveriam fazer (ao menos em teoria).  Elas criaram um modelo que presumia que o comportamento passado persistiria no futuro.  O modelo funcionou — até o momento em que parou de funcionar.
Quando chega este momento, tudo se torna uma questão de vida ou morte nos negócios.  A pressa para sair do mercado antes do colapso leva a uma liquidação de títulos — que brevemente não valerão mais nada — a preços vigentes de mercado.  E quanto o valor dos títulos cai a zero, as cabeças rolam.  Até aí, o mercado estava funcionando exatamente como deveria, ou seja, corrigindo os excessos e punindo os culpados.  Mas então os mais poderosos jogadores da indústria foram socorridos por políticos que utilizaram caminhões de dinheiro de impostos.
O filme Margin Call - O Dia Antes do Fim mostrou que o mercado financeiro estava funcionando como deveria, seguindo os sinais de lucros e prejuízos que estavam sendo emitidos.  Este filme é tão interessante quanto — ou talvez ainda mais interessante que — A Grande Aposta.  O drama é intenso e o filme é eletrizante para quem possui o mínimo interesse em mercados financeiros.
No entanto, a pergunta que nem A Grande Aposta e nem Margin Call - O Dia Antes do Fim abordam é exatamente aquela que todos deveriam estar fazendo: como foi que tantas pessoas espertas erraram de maneira tão fragorosa e simultaneamente? 
É aí que temos de lidar com o delicado sistema das taxas de juros e com a maneira como os juros foram distorcidas por meio 1) das políticas monetárias do Fed, 2) de empréstimos subsidiados pelo governo americano, e 3) de atitudes temerárias de corretores que sabiam que, caso algo desse errado, seus bancos certamente seriam socorridos pelo governo, pois eram considerados "grandes demais para quebrar".
A máquina de criar dinheiro
Para entender o que houve, o melhor documentário disponível é Money for Nothing: Inside the Federal Reserve [N. do E.: e o mais completo artigo em língua portuguesa é este].  Esse documentário entrevista pessoas do alto escalão do Fed.  Ele acompanha a carreira de Alan Greenspan e de Ben Bernanke, e como suas visões sobre a política monetária mais adequada foram se alterando.
Neste documentário encontramos as evidências da real causa do problema.  Após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, e em decorrência das guerras no Afeganistão e no Iraque, o Fed embarcou em uma política monetária extremamente expansionista.  O Banco Central americano derrubou as taxas de juros continuamente e o governo americano, se aproveitando dos juros baixos, criou programas que subsidiavam empréstimos para a compra de imóveis, gerando uma atmosfera de vale-tudo.  Agências para-estatais — Fannie Mae e Freddie Mac — foram estimuladas pelo governo a financiar toda e qualquer hipoteca.  A ideia de se tornar proprietário de imóveis se tornou praticamente uma doutrina religiosa, e todo o aparato regulatório, monetário e burocrático assumiu a função de fazer tudo acontecer.
O resultado foi a formação de volumoso e amplo conjunto de erros.  E é exatamente isso que tem de ser explicado.  Sim, é claro que os participantes do mercado cometem erros.  Mas como é que repentinamente todo mundo começa a errar?  Por que os erros dessas pessoas se concentraram exclusivamente no mercado imobiliário e em nenhum outro setor?  E por que eles cometeram erros no setor imobiliário neste período e não em períodos anteriores?
Qualquer explicação que não aborde diretamente essas perguntas não está indo ao âmago do problema, e não pode ser considerada como uma retratação realista do que ocorreu.
Dependendo do seu conhecimento prévio, o filme A Grande Aposta — por mais divertido que seja — pode ser extremamente enganoso.  Não é que ele esteja totalmente errado; ele é apenas incompleto.  Qualquer pessoa que tente vender uma explicação para a crise financeira de 2008 e que não mencione as políticas monetárias do Fed e nem as políticas do governo americano voltada para o subsídio da compra de imóveis é tão confiável quanto um corretor que ofereceu um título podre como sendo um ótimo investimento em 2007.
Por que devemos nos importar com como a crise de 2008 é interpretada?  Porque, assim como a crise de 1929, a história que contamos está diretamente relacionada com as políticas que são posteriormente implantadas.  Se a crise de 2008 representou o fracasso do capitalismo, então novas e maciças regulamentações, mais podores dados a políticos e mais impostos talvez façam sentido.  Agora, se a crise de 2008 decorreu de políticas monetárias e governamentais ruins, então as políticas futuras a serem adotadas serão bem distintas.

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